Controle da prisão processual e a Resolução 66 do CNJ

Por Antonio Scarance Fernandes

(Artigo publicado no site Consultor Jurídico, acessado em 05/03/09. Veja aqui)


No início do ano de 2009 foi publicada a Resolução 66 do Conselho Nacional de Justiça, de 27 de janeiro. Seus objetivos, conforme consta de seu preâmbulo, foram os seguintes: criar mecanismos de controle estatístico e disciplinar o acompanhamento, pelos juízes e tribunais, dos procedimentos relacionados à decretação e ao controle dos casos de prisão provisória. Em suma, tem como principal meta o controle das prisões processuais.


De há muito a doutrina aventava a necessidade de aperfeiçoamento entre nós dos mecanismos de controle sobre a prisão, a fim de não ficar a análise da imprescindibilidade de seu prolongamento condicionada, quase que exclusivamente, aos pedidos de liberdade provisória, de relaxamento do flagrante ou de revogação da preventiva feitos ao juiz pelo defensor ou à impetração de habeas corpus aos tribunais.


O exemplo de outros países, como Itália e Portugal, sugere duas alternativas interessantes: a previsão de prazos certos e escalonados de prisão segundo a gravidade e quantidade das penas e a revisão periódica da necessidade de manutenção da prisão.


No Brasil, só recentemente houve fixação de prazo determinado para a prisão cautelar. A constatação de constrangimento ilegal por excesso de prisão era feita com base no artigo 648, II, do CPP, sendo ela permitida pelo tempo resultante da soma dos prazos previstos para a prática dos atos do procedimento, chegando-se por construção pretoriana ao total de 81 dias. Esse período nunca foi visto como um marco fatal que, extrapolado, impusesse a liberação do preso.


O encarceramento era mantido pelos tribunais além dos 81 dias, justificando o excesso com várias motivações: a complexidade do caso; a responsabilidade do atraso imputada à defesa; a necessidade de realização de exames periciais, como o de insanidade mental; a inexistência de prazo para, após a pronúncia, ser o acusado julgado pelo Tribunal do Júri.


Toda essa construção foi finalmente sintetizada pela idéia aceita nos tribunais de que o constrangimento deve ser analisado em cada caso dentro de um critério de razoabilidade. Em suma, sendo razoavelmente justificado o atraso, não haveria constrangimento ilegal.


Houve, depois, a definição de prazo certo na Lei sobre Crime Organizado, sendo, atualmente, de 81 dias, quando o réu estiver preso, e de 120 dias, quando solto (art. 8º, da Lei 9.034/95), mas continuaram os tribunais seguindo os mesmos parâmetros anteriormente acolhidos, aceitando os motivos acima apontados para justificar o excesso de prazo e acolhendo a orientação de somente haver constrangimento quando a transposição dos oitenta e um dias não fosse razoável.


Com a Emenda Constitucional 45, de 2004, foram assegurados, no inciso 5º, LXXVIII, a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação. Uma das exigências derivadas dessa garantia é a de assegurar a todos os presos a rápida tramitação dos processos contra eles instaurados, de modo a não alongar a sua privação provisória de liberdade.


No ano de 2008, por meio das Leis 11.689 e 11.719 seguiu-se o mesmo caminho iniciado com a Lei do Crime Organizado de estipular prazos certos para conclusão do processo. Assim, previu-se o tempo de 90 dias para encerramento da primeira fase do procedimento do júri (art. 412) e o de 60 dias para a realização da audiência única de instrução, debates e julgamento do procedimento comum ordinário (art. 400, CPP). Logo a doutrina salientou servirem tais prazos como reguladores do tempo possível de prisão provisória.


Contudo, a fixação desses prazos foi vista com descrédito, imaginando-se que, como sucedeu com a providência semelhante da Lei sobre Crime Organizado, a ultrapassagem dos períodos estipulados não seria eficazmente controlada, continuando a sua observância a depender exclusivamente do empenho dos defensores.


Veio, assim, em boa hora a Resolução do CNJ. Não interfere no poder decisório do juiz a respeito da decretação ou da manutenção da prisão provisória. Somente estabelece alguns mecanismos de controle de modo a evitar a paralisação injustificada de processos de réus presos. Poderia, até mesmo, como se aventou no início dos debates em torno de sua redação definitiva, ter fixado a exigência de o juiz, periodicamente, reexaminar a necessidade de permanência da custódia.


Prevê, no artigo 1º, a necessidade de comunicação trimestral à Corregedoria pelas varas de inquéritos e pelas varas criminais de alguns dados sobre as prisões: número de prisões em flagrante, temporárias e preventivas; nomes dos presos; números dos processos; naturezas das prisões; unidade prisional de recolhimento. No final do dispositivo, consta regra muito importante no sentido de se informar a data e o conteúdo do último movimento processual.

A comunicação por relatório ficará dispensada quando os dados estiverem disponíveis em sistemas informatizados (§ 1º). Constatada a paralisação do feito por mais de três meses, os autos serão encaminhados ao juiz, a fim de que dê ao processo seguimento regular (art. 2º) e comunique à Corregedoria as providências adotadas (art. 4º). As disposições serão também aplicadas aos processos em tramitação nos tribunais (art. 3º). A resolução atribui às Corregedorias a fiscalização do cumprimento de suas regras (art. 5º). Permite aos tribunais estabelecimento de periodicidades menores de controle (art. 6º).

Almeja-se que, com a resolução, haja sensível redução dos casos de continuidade de prisões desnecessárias e de perpetuação de prisões por períodos que excedam sem justificativa os tempos de encarceramento provisório permitidos. Até agora, eram raros os casos em que o magistrado atuava de ofício. Como salientado, a análise do excesso de prisão e de sua regularidade dependiam de iniciativa do acusado e de seu defensor. Após o juiz, na análise dos pleitos feitos pelo acusado, e o tribunal, na apreciação de Habeas Corpus, afirmarem a legitimidade da prisão, dificilmente se discutia novamente sobre a necessidade de ser o acusado mantido preso. Espera-se que esse quadro se altere com a resolução.

Instala-se, enfim, no Direito brasileiro louvável mecanismo de verificação periódica da prisão cautelar. A exigência de controle do juiz sobre o tempo de prisão constitui providência que dá efetiva vigência ao princípio constitucional da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII) e efetividade à norma do artigo 400 do CPP que fixa o prazo de 70 dias para encerramento dos processos de rito comum ordinário.

A resolução é justificada em suas considerações iniciais por duas razões especiais: o aumento do número de presos provisórios e os fatos constatados nos mutirões carcerários. Fatos como os que são objeto de divulgação pela imprensa e noticiam manutenção de pessoas presas por infrações insignificantes, como furto de pão, de refrigerantes, ou referem prisões por períodos excessivamente longos. Quiçá com a Resolução tais fatos desaparecem dos noticiários, cumprindo ela, assim, a sua finalidade.

Merece, ainda, realce outro ponto importante da resolução. Consta de um de seus considerandos o seguinte: “o magistrado, ao receber o auto de prisão em flagrante, deve apreciar os seus termos, verificando rigorosamente o respeito aos requisitos da legalidade da prisão, decidir sobre a concessão de liberdade provisória, com ou sem fiança, relaxar ou manter a prisão quando presentes os pressupostos de prisão preventiva, sempre por decisão fundamentada e observada a legislação pertinente”.

Embora o tema esteja tratado na parte preambular da resolução, representa forte indicação de como deve o juiz, em face do ordenamento em vigor, atuar quando recebe o auto de prisão em flagrante.

A verificação da regularidade da prisão em flagrante é imposta constitucionalmente, devendo o juiz, se houver ilegalidade, relaxá-la (art. 5º, LXV). Caso inexista vício na prisão ou no auto, restam ao juiz duas possibilidades: manter a prisão em flagrante quando presentes os pressupostos da prisão preventiva (art. 310, par.único, CPP) ou conceder a liberdade provisória sem fiança (art. 310, par.único, CPP) ou com fiança quando for a única cabível, como na hipótese do artigo 325, § 2º, CPP.

O juiz deveria, em face do sistema vigente, adotar uma dessas resoluções sempre, de maneira fundamentada, haja ou não pedido do preso.

O Projeto de Lei 4.208/2001 sobre prisão processual, medidas cautelares e liberdade provisória, com o objetivo de forçar o juiz a tomar qualquer dessas decisões, tornou claras as soluções que podem ser adotadas, pois, embora decorressem do ordenamento, por estarem tratadas de maneira dispersa, não eram cumpridas. Assim, constará do novo artigo 310 caput o seguinte: Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: I – relaxar a prisão ilegal; II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os pressupostos do art. 312; ou III – conceder liberdade provisória, com ou sem fiança, nas hipóteses previstas em lei. A Resolução, de certa forma, antecipa o que viria com a nova lei.

É pelos motivos expostos que se louva a Resolução 66, do Conselho Nacional de Justiça. Sem ferir a independência do magistrado em seu poder de decidir sobre prisão e liberdade provisória, cria mecanismo importante de controle periódico das prisões cautelares, com o claro objetivo de evitar a permanência de prisões ilegais ou desnecessárias ou o constrangimento decorrente do tempo excessivo de prisão. Por outro lado, explicita ser dever do magistrado sempre, de maneira fundamentada, proferir a decisão que julgar conveniente entre as três possíveis quando receba auto de prisão em flagrante: relaxamento da prisão, concessão de liberdade provisória ou sua manutenção se presentes os pressupostos da prisão preventiva.