MANDADO DE SEGURANÇA Nº. 004038-2011
NÚMERO PROCESSO: 0000913-46.2011.8.10.0000
IMPETRANTE: ESTADO DO MARANHÃO
IMPETRADO: JUIZ DA PRIMEIRA VARA DE BACABAL
RELATOR: Des. RAIMUNDO FREIRE CUTRIM
PROCURADORA: THEMIS MARIA PACHECO DE CARVALHO (Respondendo)
CÂMARAS CÍVEIS REUNIDAS
I
Trata-se de Mandado de Segurança, com pedido de liminar, impetrado pelo ESTADO DO MARANHÃO em face de suposto ato abusivo e ilegal perpetrado pelo MM.JUIZ DE DIREITO DA PRIMEIRA VARA DA COMARCA DE BACABAL/MA, consubstanciado na edição da portaria nº. 003/2010, que determinou a interdição da carceragem da 1ª Delegacia de Polícia de Bacabal/MA, assim como a imediata transferência dos presos para outras unidades prisionais do Estado.
Sustenta o impetrante, em breve síntese de sua exordial, que após realizar inspeção na 1ª Delegacia de Polícia de Bacabal a autoridade impetrada concluiu que naquela carceragem não havia condições de abrigar presos em razão da superlotação em suas celas, motivo pelo qual editou o ato administrativo objeto da presente impetração (portaria nº. 003/2010).
Aduz que a interdição da carceragem da 1ª Delegacia de Polícia de um dos maiores municípios do Estado do Maranhão, assim como a ordem de transferência dos presos para outras unidades prisionais, significa apenas deslocar o problema da superpopulação carcerária de um local para o outro.
Afirma, peremptoriamente, que “tal como Pilatos, a autoridade coatora “resolve” o problema da superlotação do município de Bacabal, criando ou, mais provavelmente, aumentando os problemas que já existem nos outros municípios para onde os presos serão levados” (fl. 05).
Prossegue ressaltando que o ato impugnado viola o art. 144 da Constituição Federal, que garante aos cidadãos o direito fundamental à segurança, na medida em que propicia a ocorrência de motins, agressões, rixas e acerto de contas entre a comunidade carcerária, além da facilitação à fuga de presos, existindo, inclusive, precedente jurisprudencial desta Egrégia Corte de Justiça nesse sentido ao analisar caso congênere.
Assevera, também, que a construção de novos estabelecimentos prisionais gera aumento de despesa, motivo pelo qual exige que sejam tomadas as providências previstas na Lei de Responsabilidade Fiscal, tais como estimativa do impacto orçamentário-financeiro e declaração do ordenador de despesa de que o aumento tem adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual.
Por fim, alega a existência de procedimento licitatório (nº. 3290/2010-SSPMA) objetivando a realização das reformas necessárias na 1ª Delegacia de Polícia de Bacabal, sendo que no momento este já está homologado, aguardando apenas a liberação orçamentária para assinatura do contrato com a empresa vencedora do certame.
Por vislumbrar a existência de elementos de convicção idôneos para concessão do pleito liminar, o ilustre Desembargador Relator determinou deferiu o pedido (fls.19-24), consignando, dentre outros fundamentos, que à Administração Pública é conferida a prerrogativa legal para a prática de atos discricionários, que devem ser pautados na conveniência e oportunidade administrativa, sendo tal discricionariedade nada mais do que a de ação administrativa dentro dos limites estabelecidos pela lei.
Regularmente notificada a autoridade impetrada, esta informou que o ato impugnado foi exarado em razão da inexistência de condições mínimas de segurança, infraestrutura e salubridade da carceragem da 1ª Delegacia de Polícia de Bacabal, sendo que tais fatos ganharam notoriedade nacional recentemente (fls.898-899).
Vieram os autos à esta Procuradoria para emissão de parecer.
É o que de relevante havia para relatar.
II
A presente impetração insurge-se contra ato normativo de efeitos concretos (portaria nº. 003/2010) editado pelo MM. Juiz de Direito da 1ª Vara da Comarca de Bacabal, Dr. Celso Orlando Aranha Pinheiro Júnior, que, no essencial, determinou a interdição por tempo indeterminado da carceragem da 1ª Delegacia de Polícia de Bacabal/MA, até que sejam providenciadas as adaptações necessárias visando atendimento aos requisitos mínimos de salubridade e segurança.
A autoridade coatora fundamentou a edição do ato na falta de condições mínimas de salubridade da carceragem da 1ª Delegacia de Polícia de Bacabal/MA, fato que afronta a dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, consagrado do art. 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988.
Alega, ainda, que já houveram inúmeras tentativas de tentar implementar condições mínimas de salubridade e segurança para funcionamento da carceragem em comento, inclusive com 02 (duas) interdições judiciais anteriores e uma audiência pública realizada na Comarca em que exerce jurisdição.
De relevo registrar, para correta compreensão da gravidade do caso, que as condições precárias da carceragem da 1ª Delegacia de Polícia de Bacabal/MA repercutiram nacionalmente em razão de reportagem do programa televisivo “Fantástico”, transmitido pela Rede Globo de Televisão no dia 30 de março de 2011, no qual restou consignado que:
“Olhando de perto, mais parece uma jaula, como se a gente estivesse em um zoológico. Uma situação nunca vista antes. No interior do Maranhão, a “jaula” para seres humanos fica em uma delegacia. Ela é destinada ao banho de sol e ao encontro de visitantes. Mas, na verdade, funciona como um depósito para colocar presos”.
Ademais, recentemente, já havia sido determinada a interdição da carceragem, pelos mesmos motivos, por intermédio da Portaria nº. 01/2010, editada pelo MM. Juiz de Direito da 1ª Vara da Comarca de Bacabal, tendo esta Egrégia Corte de Justiça, contudo, no Mandado de Segurança nº. 7199/2010, declarado sua ilegalidade por afronta ao direito fundamental à segurança.
Cumpre ter presente, ab initio, a peculiaridade de se estar diante de ação mandamental vocacionada à proteção de direito líquido e certo contra condutas estatais maculadas por ilegalidades ou abuso de poder, nos moldes do art. 5º, LXIX da Constituição Federal.
Sem embargo, não vislumbro, nem de longe, qualquer ilegalidade no ato ora impugnado.
Aliás, a ilegalidade é perpetrada pelo próprio impetrante, na medida em que não cumpre com o dever de oferecer condições mínimas de salubridade, higiene e segurança à população carcerária, sendo que tal conduta, muitas vezes, conta com o apoio da própria sociedade, que, infelizmente, enxerga esse gravíssimo problema social por uma ótica extremamente maniqueísta.
Tal constatação não passou desapercebida por George Rusche e Otto Kirchheimer ao aduzirem que:
As pessoas declaravam que o sistema penal tornara-se uma farsa e que a punição deveria uma vez mais converter-se em algo que os malfeitores temessem até a medula de seus ossos, algo que os torturasse e os destruísse, como as leis penais de Carlos V. O machado, os açoites e a fome deveriam ser reintroduzidos de forma a eliminar os criminosos (Punição e Estrutura Social, editora Freitas Bastos, 1999, p.129).
Não constitui demasia, também a propósito da questão, colacionar lição de Evandro Lins e Silva:
Prisão é de fato uma monstruosa opção. O cativeiro das cadeias perpetua-se ante a insensibilidade da maioria, como uma forma ancestral de castigo (...) Positivamente, jamais se viu alguém sair de um cárcere melhor de que quando entrou (...) A sociedade que os enclausurou, sob o pretexto hipócrita de reinserí-los depois em seu seio, repudia-os, repele-os, rejeita-os (...) Não é demais martelar: a cadeia fabrica delinqüentes, cuja quantidade cresce na medida e na proporção em que for maior o número de presos e condenados (O Salão dos Passos Perdidos, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.32).
Analisando o tema com os olhos lançados na Constituição Federal percebe-se, claramente, que a omissão reiterada do Estado do Maranhão em oferecer mínimas condições de sobrevivência aos encarcerados malfere a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), o direito fundamental do preso de ter respeitada sua integridade física e moral (art. 5º, XLIX) e a vedação da existência de penas cruéis (art. 5º, XLVII, “e”).
Importante mencionar, ainda, que a conduta omissa do Estado do Maranhão com relação às condições para o regular funcionamento da carceragem da 1ª Delegacia de Polícia de Bacabal/MA, por representar uma gravíssima ofensa ao princípio da dignidade humana, tem reflexos nas obrigações oriundas dos tratados internacionais dos quais o Brasil é parte, cuja violação poderá acarretar sanções no âmbito do direito internacional.
O Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos objetiva, primordialmente, promover a dignidade da pessoa humana diante situações específicas, podendo-se apontar, com relação à vedação de tratamento cruel no cárcere, documentos como a Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (Decreto 40, de 15/02/1991), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) e a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Merecem destaque, nesta seara, as regras mínimas para tratamento de prisioneiros adotadas no 1º Congresso das Nações Unidas, sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinqüentes realizado em Genebra. No tópico nº. 10 de tal documento consta que “os locais de prisão, e particularmente os destinados a alojar os presos durante a noite, devem, levando-se em conta o clima, corresponder às exigências da higiene, especialmente no que concerne à cubagem do ar, à superfície mínima, à iluminação, à calefação e ao arejamento”
Esse conjunto de garantias deferidas ao preso, na Constituição Federal e no plano dos tratados internacionais, perfaz aquilo que é denominado pela doutrina de dever de punir com ética, caracterizado pela observância “da dignidade da pessoa humana, valor inafastável na aplicação da sanção penal em todas as suas fases. A abolição de penas cruéis e infamantes é reflexo da observância do princípio da dignidade humana na aplicação da pena” (George Marmelstein, Curso de Direitos Fundamentais, 2ª edição, editora Atlas, p.171).
Sobre o ponto, vale colacionar fragmento expressivo da obra de Eugenio Raúl Zaffaroni et al (Direito Penal Brasileiro, editora Revan, V-I, p.243), ao tecer considerações sobre o princípio da superioridade ética do Estado, vejamos:
À medida que o estado de direito cede às pressões do estado de polícia, encapsulado em seu seio, ele perde a racionalidade e enfraquece sua função de pacificador social, mas ao mesmo tempo perde nível ético, porque acentua a arbitrariedade da coerção. Porém, à margem desse declínio moral relativamente freqüente, o certo é que o estado perde por completo sua eticidade quando legitima formas de coação que ferem a ética de modo direto e inquestionável (grifo nosso)
Indaga-se: o ESTADO DO MARANHÃO pune eticamente ao permitir que dois presos passem a noite inteira na chuva, dentro de uma espécie de “jaula”, na carceragem da 1ª Delegacia de Polícia de Bacabal/MA1? A resposta me parece inqüestionavelmente negativa.
Importante ressaltar que se uma pena não é cruel em abstrato pode tornar-se cruel em concreto por ocasião de sua aplicação, motivo pelo qual a proscrição da crueldade pela Constituição Federal é um comando direcionado para o Estado em todos os seus níveis, haja vista que se o Poder Legislativo não pode prever abstratamente penas cruéis, também não pode o Poder Executivo torná-las degradantes, por ação ou omissão, quando concretamente aplicadas.
De acordo com o art. 1º da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, o termo “tortura” “designa qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência”.
Na hipótese dos autos, não é preciso esforço interpretativo para enquadrar a situação dos presos da carceragem da 1ª Delegacia de Polícia de Bacabal como uma espécie de tortura institucional.
Com base em tais premissas, com todas as vênias, discordo do fundamento utilizado pelo ilustre Desembargador Relator para deferir o pedido de medida liminar nos autos da presente ação mandamental, de acordo com o qual a autoridade coatora teria invadido competência discricionária da Administração Pública ao editar a portaria nº. 003/2010.
É que, como já mencionado, a observância dos direitos fundamentais (dentre deles a vedação de penas cruéis e o respeito a integridade física e moral do preso) é uma exigência direcionada para todos os poderes constituídos – Legislativo, Executivo e Judiciário – uma vez que nenhum destes se confunde com o poder que institui os direitos fundamentais, que lhe é reconhecidamente superior.
Historicamente, a partir do fortalecimento do Estado de Direito, cabe ao Poder Judiciário a tarefa de defender direitos violados ou ameaçados de violência, sendo prerrogativa sua o controle dos atos dos demais poderes, dando concreção ao sistema dos freios e contrapesos (checks and balances) previsto no art. 2º da Constituição Federal.
Esse o contexto, já adiantando a conclusão deste parecer, estou convicta que agiu corretamente o MM. Juiz de Direito da 1ª Vara da Bacabal ao editar o ato ora impugnado, inexistindo qualquer invasão do Poder Judiciário em área de competência da Administração Pública, eis que o dever de respeito à dignidade humana, à integridade física e moral do preso e a vedação de penas cruéis não caracterizam hipóteses de atuação discricionária do Poder Público, mas, em verdade, materializam deveres de índole constitucional.
Pertinente registrar, ad argumentandum tantum, que mesmo nos casos de atuação discricionária a Administração Pública está estritamente vinculada aos direitos fundamentais, consoante adverte o Ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Ferreira Mendes et. al., in verbis:
A vinculação da Administração às normas de direitos fundamentais torna nulos os atos praticados com ofensa ao sistema desses direitos. De outra parte, a Administração deve interpretar e aplicar as leis segundo os direitos fundamentais. A atividade discricionária da Administração não pode deixar de respeitar os limites que lhe acenam os direitos fundamentais (Curso de Direito Constitucional, 2ª edição, editora Saraiva, p.247, grifos nossos).
Dito de outra forma, a autoridade impetrada estaria agindo de forma inconstitucional e ilegal se diante do quadro dantesco em que se encontra a carceragem da 1ª Delegacia de Polícia de Bacabal/MA, permanecesse inerte e omisso – como vem fazendo a Administração Pública ao longo do tempo – aguardando pacientemente a eclosão de mais uma rebelião, com as consequentes decapitações e mortes, que, desgraçadamente, tem se revelado comuns hodiernamente.
Esse entendimento encontra apoio no magistério doutrinário de Guilherme de Souza Nucci, vejamos:
É o magistrado um fiscal da execução da pena e defensor da lei e dos condenados, pouco interessando a eventual conveniência do Poder Público em manter em funcionamento um lugar totalmente inapropriado aos fins aos quais se destina. Nessa linha de pensar, se as condições fornecidas aos presos provisórios são inadequadas, ou melhor, degradantes, e assim constatadas pelo juiz da execução, este tem o dever de interditar o estabelecimento prisional, a fim de garantir o respeito à dignidade humana inerente à pessoa, preconizado pela nossa Lei Maior (Leis Penais e Processuais Comentadas. 4 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 66, grifos nossos).
É importante acentuar que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça registra diversos precedentes no sentido da responsabilidade do Estado em zelar pela integridade física do preso, vejamos:
(...) 3. In casu, a Corte de origem confirmou integralmente a sentença a quo, condenando o Estado ao pagamento da indenização pleiteada, com fulcro na Responsabilidade Civil do Estado, in litteris: O Estado é responsável pela construção e administração do sistema penitenciário, especialmente pela boa manutenção e regular funcionamento dos estabelecimentos prisionais, cabendo, portanto, observar que, ao exercer o direito de punir e de restringir a liberdade dos indivíduos que transgridem as leis, passa a ter o dever de custódia sobre eles. Os argumentos do Estado de Mato Grosso do Sul, quando menciona que o apelante, ao ser condenado, deixou de cumprir seus deveres, infringindo a lei, podendo então ser considerada a restrição de sua liberdade como um canal para a desconsideração dos seus direitos mais básicos, são deploráveis, dando conta que realmente despreza o seu dever de cuidar daqueles que puniu. Ora, não se discute aqui as razões da condenação de um preso; mas sim, uma circunstância posterior, que é a má, tardia ou falta de atuação estatal, no que concerne à custódia dos condenados ou processados pela Justiça. 7. Ad argumentandum tantum, no mérito melhor sorte não lhe assistiria, isto por que a Constituição da República Federativa do Brasil, de índole pós-positivista e fundamento de todo o ordenamento jurídico expressa como vontade popular que a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como um dos seus fundamentos a dignidade da pessoa humana como instrumento realizador de seu ideário de construção de uma sociedade justa e solidária. 8. Consectariamente, a vida humana passou a ser o centro de gravidade do ordenamento jurídico, por isso que a aplicação da lei, qualquer que seja o ramo da ciência onde se deva operar a concreção jurídica, deve perpassar por esse tecido normativo-constitucional, que suscita a reflexão axiológica do resultado judicial. 9. A plêiade dessas garantias revela inequívoca transgressão aos mais comezinhos deveres estatais, consistente em manter-se superpopulação carcerária em condições perigosas, máxime quando os presos se vêem obrigados a confeccionar e possuir instrumentos ofensivos - que servem mais para se defender e garantir suas vidas e intimidade do que atacar alguém ou se rebelar, sendo certo os temores que resultam do encarceramento ilegal (...) 19.Recurso especial parcialmente provido, para afastar a condenação ao pagamento da verba honorária (REsp 873.039/MS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/03/2008, DJe 12/05/2008, grifos nossos)
AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. MORTE DE PRESO SOB CUSTÓDIA DO ESTADO. OMISSÃO ESTATAL. INTEGRIDADE FÍSICA DO PRESO. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. AGRAVO IMPROVIDO. I – O Tribunal possui o entendimento de que o Estado se responsabiliza pela integridade física do preso sob sua custódia, devendo reparar eventuais danos. Precedentes. II - Para se chegar à conclusão contrária à adotada pelo acórdão recorrido quanto à existência de nexo causal entre a omissão do Estado e o resultado morte, necessário seria o reexame do conjunto fático-probatório constante dos autos, o que atrai a incidência da Súmula 279 do STF. III - Agravo regimental improvido (AI 799789 AgR, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 02/12/2010)
Também não procede o argumento do impetrante no sentido de que o ato impugnado na presente impetração viola o direito fundamental à segurança dos cidadãos, previsto no art. 144 da Constituição Federal2.
Em primeiro lugar, não vejo como o ato impugnado poderia, de alguma forma, configurar ofensa ao direito fundamental à segurança, pois não houve uma determinação da autoridade impetrada para liberação indiscriminada dos detentos, pondo em risco, com tal conduta, a segurança das pessoas.
Impõem-se relembrar que o ingresso do indivíduo no cárcere não lhe despe dos direitos que lhe são outorgados pela Constituição Federal, razão pela qual é legítimo concluir que os presos também são destinatários do preceito constitucional inscrito no art. 144, argumento que, sob meu ponto de vista, reforça a tese de legalidade do ato impugnado, vez que este tinha como desiderato preservar a incolumidade dos presos que estavam na carceragem da 1ª Delegacia de Polícia de Bacabal/MA.
Por outro lado, ainda que se faça malabarismo hermenêutico para caracterizar uma violação ao direito fundamental à segurança, restaria configurada a colisão entre direitos fundamentais. Em tais situações, não é possível aplicar-se os critérios hermenêuticos tradicionais para resolução de conflitos de normas (hierarquia, cronologia e especialidade), devendo-se buscar a máxima preservação dos valores constitucionais em conflito, por intermédio da técnica da concordância prática ou da harmonização.
O princípio da concordância prática, de acordo com o Tribunal Constitucional alemão, determina que nenhuma das posições jurídicas conflitantes será favorecida ou afirmada em sua plenitude, mas que todas elas o quanto possível, serão reciprocamente poupadas e compensadas. Trata-se, portanto, de uma tentativa de equilibrar (ou balancear) os valores conflitantes, de modo que todos eles sejam preservados pelo menos em alguma medida na solução adotada. O papel do jurista é precisamente tentar dissipar o conflito normativo através da integração harmoniosa dos valores contraditórios George Marmelstein, Curso de Direitos Fundamentais, 2ª edição, editora Atlas, p. 390).
Presente tal contexto, não pode prosperar a tese defendida por esta Egrégia Corte de Justiça quando do julgamento do Mandado de Segurança nº 7199/2010, quando foi declarado ilegal ato administrativo semelhante ao impugnado na presente impetração, justamente pelo fato desta ter dado total primazia ao direito fundamental à segurança, em detrimento da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), do direito fundamental do preso de ter respeitada sua integridade física e moral (art. 5º, XLIX) e da vedação da existência de penas cruéis (art. 5º, XLVII, “e”).
Sobre o tema, vale mencionar lição do Promotor de Justiça do Maranhão, Cláudio Alberto Gabriel Guimarães, oriunda da tese que lhe conferiu o título de Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, in verbis:
Nessa seara uma conclusão é inquestionável: mesmo que seja para assegurar as melhores condições em prol da segurança do indivíduo com escopo de garantir uma harmônica convivência social, o Direito Penal não pode avançar a ponto de pôr em perigo os direitos e garantias fundamentais do ser humano e, conseqüentemente, sua dignidade (As Funções da Pena Privativa de Liberdade no Sistema Penal Capitalista, editora Revan, p.320-321).
Impressiona a negligência do Estado do Maranhão com relação ao recorrente problema da carceragem da 1ª Delegacia de Polícia de Bacabal, uma vez que este já fora objeto de interdição outras vezes pelos mesmos motivos. Na exordial da presente ação mandamental não consta uma linha sequer – não considero um processo de licitação idôneo para tanto – sobre medidas concretas visando, pelo menos, minimizar o sofrimento dos detentos.
A leniência da Administração Pública em buscar soluções para o problema da superpopulação carcerária não pode ser salvaguardada pelo Poder Judiciário. Ninguém ignora que a solução para tal questão, em virtude da sua complexidade, não ocorrerá da noite para o dia. Contudo, no caso específico da Delegacia de Bacabal, há anos o problema vem sendo reiteradamente noticiado, sem que nenhuma medida concreta tenha sido efetivada.
Por fim, é necessário refletir sobre passagem provocativa de Nilo Batista a respeito da inoperância do Estado no cumprimento de suas obrigações, vejamos:
Difícil é cobrar do Estado respeito à lei e a proteção dos direitos que toda pessoa tem, a começar pela vida. Perto da culpa do Estado, a do bandido é pequena. E o bandido, a gente consegue prender, processar, julgar e condenar. E o Estado? (Nilo Batista, Punidos e Mal Pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de Hoje, editora Revan, p. 159, grifos nossos)
III
Diante do exposto, esta Procuradoria de Justiça manifesta-se pela DENEGAÇÃO DA SEGURANÇA.
É o parecer.
São Luís, 06 de abril de 2011.
THEMIS MARIA PACHECO DE CARVALHO
Procuradora de Justiça